Em um cenário de rápida evolução tecnológica, a interseção entre direitos autorais e inteligência artificial (IA) configura-se como um campo jurídico em transformação, no qual distintas jurisdições buscam conciliar proteção à propriedade intelectual com estímulo à inovação algorítmica. A seguir, apresenta-se uma descrição técnica dos principais litígios e entendimentos doutrinários em seis regiões-chave: Estados Unidos, União Europeia, China, Reino Unido, Canadá e Índia.
1. Estados Unidos: Precedentes Fundamentais e Conflitos de Interesses
Nos Estados Unidos, a jurisprudência consolidada ainda reforça a tese de que a titularidade de direitos autorais exige a presença de autoria humana. Entre os casos emblemáticos:
- Thaler v. U.S. Copyright Office (2022)
- Natureza do Conflito: O autor de IA DABUS, Stephen Thaler, interpôs pedido de registro de obra produzida exclusivamente por meio de algoritmos autoexecutáveis.
- Decisão: O Escritório de Direitos Autorais (U.S. Copyright Office) indeferiu o pedido pela ausência de “autoria humana”, requisito insculpido na Lei de Direitos Autorais norte-americana (17 U.S.C. § 102(a)). A autoridade concluiu que “máquinas” ou “sistemas autônomos” não detêm personalidade jurídica capaz de ostentar titularidade de obra intelectual.
- Implicações Técnicas: Confirma o princípio de “intervenção criativa humana mínima” como critério indispensável para registro, relegando obras geradas exclusivamente por IA a categoria de “conteúdo sem proteção autoral”.
- Authors Guild et al. v. OpenAI, Inc. et al. (ongoing)
- Objetivo da Ação: Escritores renomados (John Grisham, George R. R. Martin, etc.) acionaram OpenAI e Microsoft, alegando que seus textos protegidos por copyright foram incluídos em datasets de treinamento sem licenciamento.
- Questões jurídicas: Versa sobre a validade do “fair use” na construção de modelos generativos de linguagem. O tribunal avalia se a ingestão massiva de obras para fins de treinamento configura uso transformativo ou constitui infração sistemática de direitos autorais.
- Relevância Técnica: Este litígio expõe a complexidade de definir o escopo de “uso justo” em contextos de aprendizado de máquina, abrindo discussões sobre métricas de transformação semântica e efeitos de mercado.
- Sarah Andersen v. Stability AI Ltd. (2023)
- Contexto: Artistas visuais acusam plataformas como Midjourney e DeviantArt (que utilizam código da Stability AI) de “scraping” de obras protegidas, sem obtenção de licenças, para compor datasets de treinamento.
- Aspectos Jurídicos: O processo investiga se a simples coleta de imagens (mesmo quando disponíveis publicamente) enseja violação de direitos autorais, atribuindo responsabilidade civil às empresas de tecnologia.
- Dimensão Técnica: Levanta a discussão acerca da distinção entre “inspiração estilística” (aprendizado in loco de padrões formais) e “reprodução de obra integral” por meio de modulação de pesos neurais.
- Concord Music Group, Inc. v. Anthropic PBC (2023)
- Alegação: Editora musical contesta o modelo de linguagem Claude 2 (desenvolvido pela Anthropic), afirmando que ele reproduz letras e trechos musicais protegidos.
- Implicação: Configura pioneiro litígio do setor fonográfico contra IAs de linguagem, questionando a geração de conteúdo lírico e melódico sem licenciamento prévio.
- Aspecto Técnico: A controvérsia envolve a identificação de similaridade (matching) entre saídas geradas e obras existentes, requerendo perícia técnica para aferir grau de originalidade versus cópia substancial.
Em suma, nos EUA prevalece o entendimento de que a “cadeia de autoria” só é legítima se houver intervenção humana identificável; o debate em tribunal se concentra em delimitar os contornos do “uso justo” aplicado aos processos de treinamento de IA.
2. União Europeia: Reformulação de Critérios de Originalidade e Direito Autoral
Na União Europeia, observa-se um cuidado especial em preservar o padrão de originalidade como requisito de proteção autoral, ainda que haja movimentações para acomodar tecnologias emergentes:
- RAI v. Biancheri (Itália, 2018–2023)
- Objeto da Disputa: A RAI questionou se determinado conteúdo audiovisual detinha “criatividade suficiente” para obter proteção autoral. Em primeira instância, indeferiu-se o pedido por ausência de elementos criativos relevantes; em segunda instância, reconheceu-se que escolhas estilísticas e estruturais do autor configuravam “originalidade” nos termos da Diretiva 2001/29/CE e do direito italiano.
- Aspectos Técnicos: A Corte se fundamentou em repertório jurisprudencial (“Júri-Costain”, “Infopaq”), destacando que a originalidade não se reduz a critérios quantitativos de expressão, mas envolve juízo qualitativo sobre decisões intelectuais do criador.
- Diretiva de Direitos Autorais no Mercado Único Digital (DSM) (2019)
- Embora não seja um caso litigioso específico, a DSM introduziu novidades técnicas:
- Artigo 17: Impõe responsabilidade às plataformas de compartilhamento de conteúdo para obter licenças ou demonstrar uso justo (“exception de text and data mining”) ao realizar mineração de dados em material protegido.
- Artigo 3: Sala de aula e pesquisa científica podem realizar “text and data mining” sem licença, desde que possuam acesso legal ao conteúdo.
- Relevância Técnica: A legislação caracteriza explicitamente a mineração de textos e dados (TDM) como atividade juridicamente permitida em contextos específicos, mitigando incertezas relativas ao treinamento de IAs em ambientes acadêmicos.
- Embora não seja um caso litigioso específico, a DSM introduziu novidades técnicas:
No conjunto das jurisdições europeias, constata-se forte ênfase em exigir que qualquer obra derivada de processos automáticos demonstre “criatividade humana mínima”, alinhando-se aos parâmetros de originalidade definidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
3. China: Jurisprudência Emergente Voltada à Proteção de Conteúdo Técnico e Jornalístico
A China adotou posicionamentos que, em alguns casos, superam a rigidez americana, protegendo não apenas obras literárias e artísticas, mas também textos técnicos e jornalísticos:
- Beijing Film Law Firm v. Baidu (2018)
- Configuração: Baidu disponibilizou, em sua plataforma de busca, acesso a cópias não autorizadas de artigos jurídicos da Beijing Film Law Firm.
- Decisão: O tribunal concluiu que mesmo documentos eminentemente técnicos (e não voltados ao público em geral) detêm proteção autoral. A corte ordenou a remoção dos conteúdos e aplicou indenização por danos morais e materiais.
- Implicações Técnicas: Confirma que, sob a legislação chinesa (Lei de Direitos Autorais da RPC), qualquer “representação fixada” destina-se à proteção, independentemente de finalidade comercial ou literária.
- Tencent v. Yingxun Tech (2019)
- Demanda: Tencent acusou o site Yingxun de reproduzir integralmente notícias jornalísticas sem autorização.
- Julgamento: A corte sancionou Yingxun Tech, ressaltando que o esforço editorial e de apuração configuram “criatividade intelectual” protegida pela lei local.
- Aspecto Técnico: O veredito reafirmou a extensão do direito autoral a textos informativos, o que implica que datasets de IA que incorporam notícias precisam de licenciamento apropriado.
De modo geral, a jurisprudência chinesa reforça que qualquer conteúdo fixado, seja literário ou técnico, requer autorização expressa para uso em contextos de agregação ou treinamento de algoritmos.
4. Reino Unido: Litígio Estrutural Focado no Uso de Imagens e “Fair Dealing”
No Reino Unido, há litígios de destaque sobre uso massivo de imagens para treinar modelos de geração de conteúdo visual:
- Getty Images v. Stability AI (2023)
- Fatos: Getty alega que Stability AI coletou milhões de imagens protegidas (com marcas d’água intactas) para treinar o modelo Stable Diffusion sem licenciamento prévio.
- Argumentos Jurídicos: A Getty acusa violação de copyright e concorrência desleal, enquanto a defesa invoca “fair dealing” para fins de pesquisa e desenvolvimento.
- Relevância Técnica: A controvérsia centra-se em determinar se o “scraping” de imagens para análise de padrões fidedignos constitui infração ou se a utilização para criação de modelos encontra respaldo nas exceções técnicas (por exemplo, pesquisa não comercial).
O desfecho desse caso deverá esclarecer os parâmetros de responsabilidade de provedores de infraestrutura e de pesquisa em IA, especificando se a obtenção de grandes acervos visuais independe de licenciamento ou, ao contrário, se demanda autorização prévia.
5. Canadá: Reconhecimento de Obras Criadas com IA Sob Intervenção Humana
O Canadá adota abordagem intermediária que permite proteção quando haja prova de intervenção humana:
- “RAGHAV” (2021)
- Contexto: Um criador utilizou ferramentas de IA para compor uma peça audiovisual, submetendo-a ao registro no Canadian Intellectual Property Office (CIPO).
- Deliberação: O CIPO aceitou o pedido, fundamentando-se na demonstração de que o autor guiou parâmetros-chave do processo algorítmico, configurando “intervenção humana minimamente criativa”.
- Consequência Técnica: Estabelece precedente de que modelos generativos auxiliados podem resultar em obra protegida, desde que o elemento humano seja evidente e substancial no processo de criação.
Esse posicionamento confere maior flexibilidade, mas ainda exige comprovação documental do estágio em que o autor interveio, preservando, assim, a coerência com a noção de autoria tradicional.
6. Índia: Rigidez Atual com Perspectivas de Mudança Legislativa
Na Índia, a legislação de direitos autorais (Copyright Act, 1957) reforça que apenas seres humanos podem ser titulares de direitos autorais. Entre 2020 e 2021, o Indian Copyright Office rejeitou vários pedidos de registro de obras produzidas exclusivamente por IA, com o seguinte entendimento técnico:
- Fundamentos Legais: O escritório baseou-se no artigo 2(d) do Copyright Act, que define autor como “autor de obra literária, artística, dramática ou musical”.
- Posicionamento Atual: Máquinas ou softwares não se qualificam como “autores” para fins de registro.
- Tendências Legislativas: Projetos de revisão em discussão para atualização em 2025 sugerem a possibilidade de incluir definições específicas de “obras derivadas de IA” e criar diretrizes para titularidade compartilhada (criador humano + desenvolvedor de IA).
Caso a reforma prospere, a Índia poderá adotar um modelo híbrido, contemplando coautoria entre humano e sistema de IA sob condições estritas de controle e intervenção.
Tendências Globais e Desafios Técnicos
- Intervenção Humana Mínima como Critério Unânime
- Quase todas as jurisdições analisadas (EUA, UE, China, Reino Unido, Canadá e Índia) reafirmam que a presença de “intervenção criativa humana minimamente significativa” é condição sine qua non para reconhecimento de autoria.
- A aferição desse parâmetro requer documentação de parâmetros algorítmicos e registro dos estágios em que o autor define variáveis, parâmetros de prompt ou escolhas estilísticas.
- Legalidade do Uso de Obras Protegidas em Datasets de Treinamento
- Litígios nos EUA (Authors Guild x OpenAI) e no Reino Unido (Getty Images x Stability AI) evidenciam que a delimitação de “uso justo” ou “fair dealing” carece de critérios técnicos padronizados, como métricas de transformatização e decessos de taxa de similaridade (threshold de copy ratio).
- Na Europa, a DSM introduziu exceções específicas para TDM em pesquisa acadêmica, mas mantém exigência de licenciamento em contextos comerciais.
- Proteção de Conteúdo Técnico e Jornalístico
- Jurisdições como China e UE protegem não apenas obras artísticas e literárias, mas também conteúdos jornalísticos e textos técnicos, o que implica que qualquer mineração para IA deve observar licenciamento apropriado ou exceções restritas.
- Setor Musical em Litígio Direto com IAs de Linguagem
- A ação da Concord Music contra Anthropic sinaliza que editoras fonográficas questionam a reprodução de letras e composições por modelos de IA, exigindo perícias computacionais para demonstrar correspondência entre saídas geradas e obras preexistentes.
- Ausência de Regulamentação Uniforme Sobre “Scraping” de Dados
- Embora alguns países (Reino Unido, EUA) debatam se o scraping de grandes volumes de dados protegidos se encaixa em uso justo, há indefinições técnicas sobre limites quantitativos de coleta e uso de metadados (ex.: resolução e proporção de amostras).
- Movimentos Legislativos Emergentes
- Projetos de lei em discussão na Índia e em alguns Estados-membros da UE refletem a necessidade de criar normas específicas que considerem o papel da IA como ferramenta de coautoria, estabelecendo protocolos de documentação de workflow criativo (metadados de prompt, logs de sessão, etc.).
Considerações Finais
O ambiente jurídico internacional, ao enfrentar as inovações disruptivas trazidas pela IA, opta majoritariamente por preservar a doutrina tradicional de autoria humana, exigindo comprovação de que o criador exerceu controle decisório significativo sobre a obra. As disputas em curso, especialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, terão impacto direto na definição de práticas de conformidade de grandes empresas de tecnologia, no licenciamento de datasets para treinamento e no desenvolvimento de políticas de “fair use” ou “fair dealing” aplicáveis a algoritmos.
Para o setor criativo — escritores, músicos, artistas plásticos, desenvolvedores de software —, torna-se imperativo manter cadeia de custódia de metadados, registrar intervenções criativas e buscar acordos de licenciamento prévios sempre que pertencer a registers de “corpus” de IA. Em paralelo, legisladores e reguladores precisam elaborar normas que equilibrem proteção autoral com livre fluxo de inovação, estabelecendo diretrizes claras para mineração de dados, definições de “obras derivadas” e mecanismos de atribuição de coautoria. Somente assim, em cada jurisdição, será possível compor uma sinfonia em que direito, tecnologia e criatividade caminhem em harmonia, resguardando tanto a titularidade intelectual humana quanto as potencialidades transformativas da inteligência artificial.
Lucas Oliveira – Relações Internacionais