A discussão sobre o uso da inteligência artificial (IA) no mercado da música tem se intensificado, revelando um debate multifacetado que envolve tanto aspectos econômicos quanto éticos, e que reflete uma tensão entre inovação tecnológica e preservação dos direitos dos artistas. De um lado, há a promessa de uma revolução na criação e distribuição musical, onde ferramentas de IA ampliam as possibilidades criativas e aceleram o processo de composição. Do outro, há preocupações sobre a proteção dos direitos autorais, a justa remuneração dos criadores e a autenticidade das obras.
Abaixo, temos alguns dos principais pontos de discussão relacionados a I.A no mercado da música que tomaram o noticiário recente.
A Dualidade da Inovação Tecnológica
Por um lado, as tecnologias de IA estão possibilitando novos métodos de criação musical. Empresas como Suno e Udio vêm demonstrando que é possível gerar composições em questão de minutos, proporcionando uma ferramenta que pode ser vista tanto como um apoio aos músicos quanto como uma maneira de democratizar o acesso à criação artística. Artistas que já utilizam essas tecnologias, como Holly Herndon e Grimes, exploram a IA para expandir seus horizontes sonoros, abrindo caminho para uma colaboração entre o humano e o artificial que pode enriquecer a produção cultural. Essa abordagem é celebrada por uma parte do setor, que enxerga na IA uma extensão do potencial criativo humano.
Por outro lado, há uma preocupação crescente com o uso indevido de obras protegidas. Grandes nomes da música e gravadoras têm protestado contra a utilização de músicas sem a devida autorização para treinar algoritmos de IA. Em casos recentes, artistas como Paul McCartney manifestaram suas reservas, destacando que a utilização irrestrita de obras pode levar à perda de identidade criativa e à exploração econômica dos músicos, sem que haja uma compensação adequada . Além disso, processos judiciais movidos contra empresas de IA acusadas de violar direitos autorais evidenciam a necessidade de se repensar os modelos de negócio e a legislação aplicável nesse contexto.
Diferenças entre Common Law e Civil Law
A forma como essas questões estão sendo tratadas legalmente difere significativamente entre os sistemas de common law e civil law. Nos países de common law, como os Estados Unidos e o Reino Unido, a jurisprudência e as decisões dos tribunais têm um papel fundamental na definição dos parâmetros legais para o uso da IA na música. Nesse contexto, casos recentes e decisões judiciais podem estabelecer precedentes que influenciam futuros litígios, tornando o cenário bastante dinâmico e sujeito a rápidas mudanças. Os juízes, ao interpretarem leis e aplicar princípios consagrados, podem adaptar as normativas aos novos desafios tecnológicos, porém essa flexibilidade também gera incerteza para os atores do mercado, como revela o recente caso no Reino Unido.
Já nos sistemas de civil law, encontrados em grande parte dos países da Europa continental e da América Latina, o foco recai mais sobre a legislação escrita e os códigos jurídicos. Aqui, a adaptação das normas aos desafios impostos pela IA na música tende a ser mais lenta, uma vez que requer modificações formais na legislação. No entanto, essa abordagem pode oferecer uma maior previsibilidade e segurança jurídica, pois os direitos e obrigações são definidos de maneira mais clara e detalhada nos textos legais. Em termos de direitos autorais, por exemplo, a legislação civilista frequentemente enfatiza a proteção integral dos direitos do autor, o que pode resultar em medidas mais rigorosas contra o uso não autorizado de obras para treinamento de algoritmos.
Impacto Econômico e a Busca por um Equilíbrio
O impacto econômico da IA no mercado musical também é um ponto de reflexão. Um levantamento recente feito pela PMP Strategy a pedido da CISAC, mostra que os criadores musicais podem ter uma perda de até 24% até 2028. Essa situação levanta a questão de como equilibrar a inovação tecnológica com a necessidade de assegurar que os artistas continuem a ser remunerados de forma justa. Enquanto alguns defendem que a IA pode criar novas oportunidades de negócio e fomentar a diversidade musical, outros temem que o uso indiscriminado da tecnologia possa desvalorizar a criatividade humana e gerar uma competição desigual.
Nesse sentido, a regulamentação e a transparência surgem como pontos centrais do debate. A proposta de rótulos que identifiquem músicas geradas por IA e a discussão sobre o uso justo (fair use) de obras protegidas são medidas que visam garantir que os direitos dos criadores sejam respeitados, sem, contudo, inibir a inovação. A necessidade de um diálogo constante entre legisladores, artistas, empresas de tecnologia e a sociedade se torna evidente para que se encontre um meio-termo que permita a coexistência de ambas as perspectivas.
Em síntese, a discussão sobre a IA no mercado da música encapsula uma dualidade complexa: por um lado, a tecnologia promete transformar e enriquecer a criação musical, ampliando os horizontes da criatividade; por outro, impõe desafios significativos relacionados à proteção dos direitos autorais, à remuneração dos artistas e à manutenção da autenticidade cultural. As diferenças entre os sistemas de common law e civil law refletem as variadas abordagens para lidar com essas questões, com o primeiro se caracterizando pela flexibilidade e rápida adaptação através de precedentes judiciais, e o segundo por uma maior estabilidade e previsibilidade devido à legislação codificada.
Essa tensão entre inovação e proteção é um indicativo de que estamos diante de uma transformação profunda no setor musical, onde o futuro dependerá da capacidade de todas as partes envolvidas em construir um ambiente que valorize tanto o potencial transformador da IA quanto os direitos e a integridade dos criadores humanos. A busca por esse equilíbrio continuará a ser um dos maiores desafios da era digital, exigindo uma cooperação estreita entre a indústria, o poder judiciário e os legisladores em diferentes jurisdições.
Lucas Oliveira – Relações Internacionais